RITA GARCIA

RITA GARCIA

03/07/2024

RITA GARCIA

MULHERES NEGRAS NA AGROECOLOGIA 

“Se tem racismo não tem Agroecologia”, esse foi o lema central defendido em 2014, durante o III Encontro Nacional de Agroecologia (ENA), realizado em Juazeiro, Bahia. Mas, ao que tudo indica, a situação ainda não é inclusiva. Então, para sabermos como anda o cenário da agroecologia na Bahia com relação a importância da participação de mulheres, principalmente negras, batemos um papo com a professora do Instituto Federal Baiano (IF Baiano) – Campus Governador Mangabeira, Rita Garcia, que também coordena o Projeto de Extensão Articulação de Mulheres do Vale do Jiquiriçá. Confira!

Steve Biko: Pode nos contar um pouco da sua trajetória acadêmica e como foi o processo de escolha para a área da agroecologia? 

Rita Garcia: Sou engenheira agrônoma e desde o início da minha formação sempre busquei participar das ações, práticas e eventos voltados para questões que envolvam a preservação do ambiente, agricultura alternativa (hoje agroecologia), pequeno agricultor (hoje agricultor familiar), desenvolvimento local, participava do grupo ecológico Copíoba da cidade Cruz das Almas. Mais tarde, ingressei na Educação, no ensino de Agroindústria quando tive a oportunidade de dar continuidade as linhas de trabalho no contexto acadêmico. Fiz mestrado e doutorado levando em consideração o público no qual atuava, as condições estruturais da Instituição e condições socioeconômicas do território, que possuía muitos municípios em condição de insegurança alimentar. Essas condições reforçaram a necessidade de ter trabalhos/projetos que valorizam o trabalhador e possibilitam autonomia e segurança às famílias do campo e por isso a escolha por agroecologia.  

Steve Biko: Mesmo vivendo em um Estado produtor como a Bahia, ainda temos desigualdades de produção, onde os grandes produtores têm mais espaços em detrimento dos menores, como têm sido realizadas as ações para eliminar essas desigualdades?

Rita Garcia: Desigualdades no acesso à produção pode ser considerado a principal mazela do nosso país e causa primária de todas as outras. O acesso à terra e território são fundamentais para promover soberania alimentar, autonomia, desenvolvimento social, preservação da cultura e da identidade, reparar injustiça e diminuir conflitos no campo. Não sei precisar as ações do poder público, mas notamos a morosidade nos processos de demarcação de terra e transferência de titularidade, ações de valorização do trabalhador, melhorias nas condições de produção e de trabalho, entre outros. O que sabemos é que os mais vulneráveis continuam sendo o povo preto, principalmente as mulheres e crianças.

 

Imagem: Arquivo pessoal

 

Steve Biko: Você tem estudos relacionados ao papel da mulher na Agroecologia, como começou a realizar este tipo de pesquisa? 

Rita Garcia: Coordenei alguns projetos de extensão tecnológica que envolvem o trabalho das mulheres no campo devido à forte presença feminina nas organizações, nas roças e nas feiras, no entanto, ainda falta relatos sobre e consequente visibilidade.

A partir dos projetos e aproximação com as pessoas, foi possível a troca de informações e experiência, ganho de confiança e promoção de um ambiente formativo para discutir, refletir e pensar os diversos e complexos problemas vivenciados no campo. A ideia das ações sempre foi mostrar o quanto as mulheres são protagonistas e as possibilidades de autonomia com a prática da Agroecologia. Um trabalho coletivo, por si só, já é desafiador imagine quando executado por pessoas que carregam responsabilidades frequentemente creditadas às mulheres numa sociedade patriarcal.

Steve Biko: Como podemos notar essa desigualdade de gênero presente também no campo? 

Rita Garcia: A desigualdade de gênero pode ser notada facilmente quando se observa a divisão de trabalho dentro dos lares, os cargos de liderança nos grandes empreendimentos e serviço público, os parlamentares, os números de pessoas com formação superior e de doutores, principalmente nas áreas das ciências duras, nas taxas de que mais sofre a violência de gênero.

A violência de gênero também atravessa a vida das mulheres do campo e, muitas vezes, de forma mais intensificada pelo próprio contexto do modo de vida. Por exemplo, a jornada dupla vivida pela maioria das mulheres da cidade que se constitui em trabalho produtivo (remunerado) e reprodutivo (trabalho de cuidado dos familiares e casa) passa a ser uma jornada tripla para mulher do campo, pois inclui o manejo do quintal e o trabalho na roça (plantações e criações) muitas vezes é considerado como ajuda ao marido e não um trabalho produtivo. Muitas vezes a mulher desconhece a remuneração oriunda da comercialização dos produtos, pois geralmente fica sob a responsabilidade do homem. Quando uma mulher precisa participar de algum encontro formativo ou evento promovido pela Associação tem uma sobrecarga de trabalho para deixar na sua ausência todas as tarefas executadas. Um possível socorro no caso da violência física doméstica passa a ser mais difícil devido ao isolamento, a distância entre as casas e ausência de vizinhos. 

Steve Biko: Como os trabalhos desenvolvidos relacionam-se com a questão racial? 

Rita Garcia: A questão racial atravessa toda pauta de cunho social. A maioria dos trabalhadores do campo no Brasil são negros e são detentores dos menores pedaços de terra, que são os estabelecimentos familiares. Esse público carrega arraigado às marcas do racismo. Têm seus direitos básicos delimitados, territórios invadidos, cultura negligenciada, além do difícil acesso a oportunidades. Trabalhar com os sujeitos do campo é denunciar a desigualdade e mazelas existentes no mundo rural, mas também tornar evidente seu modo de vida nos territórios, seu saber, suas lutas e conquistas, sua potência, que são componentes do contexto de onde partem o conhecimento agroecológico. 

Steve Biko: Existem movimentos fortes de luta feminina antirracista dentro do campo da Agroecologia? 

Rita Garcia: A luta contra as formas de opressão faz parte da construção do movimento agroecológico. Há muita discussão para entendimento e acolhimento das diversas vertentes e abordagens do movimento feminista. O termo feminismos no plural abarca a diversidade de lutas e vivências das mulheres que coexistem. Valorizar as vozes das demandas específicas das pretas são estratégias para inclusão e equidade. A construção das lutas feministas no movimento deve perpassar pelo viés antirracista. As mulheres pretas e indígenas sempre criticaram o universalismo que padronizam as mulheres. Porém, o debate que associa o feminismo as dimensões de raça nas produções acadêmicas ainda é muito limitado. São poucas as pretas acadêmicas, as que possuem doutorado e as que tem letramento racial.

Steve Biko: Quais as principais bandeiras destes movimentos?

Rita Garcia: As pautas antirracistas têm a ver com a própria concepção da Agroecologia e com os benefícios que a Agroecologia pode proporcionar para os povos tradicionais, quilombolas, agricultores familiares, camponeses entre outros agricultores familiares. Entende-se que, se o papel do povo negro não for reconhecido na agroecologia estamos agindo contrários aos seus princípios. É preciso reconhecer e valorizar o conhecimento historicamente construídos pelos povos tradicionais e originários, conhecimento ancestral, conhecimento produzido nos territórios. Precisa também denunciar as mazelas vividas pela categoria que mais produz alimentos diversificados e possui menos acesso as políticas de produção agropecuária, a violência no campo, as condições estruturais, entre outros.   

Steve Biko: É possível estender essa desigualdade também para a questão mais ampla de gênero, a LGBTQfobia? 

Rita Garcia: As ciências e práticas da agroecologia são construídas por pessoas diversas, entre elas, os LGBTQIA+ nos seus múltiplos espaços - associações, congressos, territórios, feiras, academia, entre outros.  Reconhecer a contribuição dessas pessoas na construção da Agroecologia é reafirmar que o movimento é contrário a toda forma de opressão.

Steve Biko: Quais os principais ganhos deste movimento? 

Rita Garcia: O feminismo é um movimento social que busca equidade de gênero nos acessos e oportunidades, nos direitos, na participação ativa na sociedade, justiça social. Dentro da agroecologia o movimento tem sido fundamental no reconhecimento das mulheres enquanto protagonistas, na visibilidade e valorização do seu trabalho no campo e “empoderamento” das mulheres. 

As mulheres são responsáveis por muitas práticas agroecológicas, são guardiões de sementes/ mudas crioulas e das raças nativas, são elas que mantém um quintal produtivo e diverso com ervas medicinais, plantas ornamentais, temperos, cuidam da água, muitas líderes nas associações e redes. Há um trabalho muito interessante da agrônoma Elisabeth Cardozo que usando uma cartilha de anotações diárias daquilo que foi consumido pela família, comercializado, doado ou trocado é possível saber o quanto elas participam do sustento da família. Acredito que maior ganho tem sido o reconhecimento de sua participação, o despertar da autoconfiança, do valor do trabalho coletivo e autonomia para quem sabe futuramente mudar seu contexto de forma positiva.

Steve Biko: Pode nos contar um pouco sobre o Projeto de Extensão Articulação de Mulheres do Vale do Jiquiriçá?

Rita Garcia: A Articulação de Mulheres do Vale Jiquiriçá surgiu a partir de um Projeto apoiado pelo CNPq, que teve por objetivo contribuir com a organização produtiva da Associação de Mulheres de Duas Barras do Fojo, no município Mutuípe, quando se percebeu a oportunidade de ampliar as ações para outras iniciativas e comunidades no Território Vale Jiquiriçá. A ideia da proposta foi articular ações que dialogam com a agroecologia e ampliar o debate da equidade de gênero e reconhecimento da condição de sujeitos de direito a partir de um desenho com quatro eixos temáticos que se complementam: quintais produtivos, agroindustrialização da produção, comércio de círculo curto e feminismo.

A equipe de trabalho foi formada por servidores e estudantes do IF Baiano campus Santa Inês, colaboradores de outros campi e instituições públicas e ONG, líderes de movimentos sociais e sindicais locais, e convidados com formação específica conforme a temática a ser abordada. O público alvo foi as agricultoras familiares camponesas - mulheres de pouca renda, semianalfabetas, com faixa etária entre 18 e 65 anos, negras e que se sentem oprimidas, marginalizadas pela sociedade e pela própria família.

O projeto realizou atividades como oficinas, intercâmbios, treinamentos, palestras, rodas de conversas e estimulando à participação em feiras e festivais da agricultura familiar nos municípios Laje, Jiquiriçá, Mutuípe, São Miguel das Matas, Santa Inês e Ubaíra. As ações têm sido mantidas por meio de recursos de editais internos e por parcerias com os sindicatos. Muitas agricultoras passaram a integrar a equipe executora, mantendo comunicação constante por meio virtual, ambiente que tem ajudado com a formação do grupo e tem se aproximado da configuração de uma Rede, possibilitando trocas de experiência entre camponesas e equipe, dando continuidade aos processos formativos, viabilizando novos encontros e a participação em eventos externos seja de cunho técnico ou político.

Steve Biko: Como tem sido este trabalho com estudantes do IFBaiano? 

Rita Garcia: Como se trata de um trabalho acadêmico não tem sentido sua execução sem a participação direta dos estudantes em todas as etapas. A participação de estudantes tanto do ensino médio quanto da graduação é relevante para sua formação na medida em que passar a conhecer de perto a realidade das comunidades do território e as questões associadas, podendo contribuir com soluções e nas futuras escolhas acadêmicas e profissionais. Alguns estudantes mesmo concluindo o curso, continuaram dando atenção ao projeto em atividades que podem ser realizadas a distância.

Steve Biko: Em uma entrevista, você fala que a participação feminina em eventos de Agroecologia é um ato de resistência, de luta e de crença noutro modelo de produção e consumo, como anda essa resistência? 

Rita Garcia:  A participação de homens e mulheres em eventos/atos de Agroecologia continua a ser resistência, apesar das crises que enfrentamos e urgência climática, da insegurança e fome da população, das doenças, das contaminações do solo, das águas e dos alimentos. Parece que essas mazelas não são suficientes para mudança do modelo de produtivo mais responsável, saudável e inclusivo. Mais que nunca é preciso ampliar o debate das formas de produção e consumo.      

Steve Biko: Quais os mecanismos que podemos ter que torne visível a participação das mulheres e mulheres negras nessas áreas mais ligada ao campo e à Agricultura? 

Rita Garcia: É inegável a participação intensa das mulheres negras nas atividades econômicas, políticas e sociais do país, mas não há visibilidade. Tornar visível a contribuição das mulheres na construção da agroecologia perpassa por ampliar o debate dos direitos humanos, mais política de acesso a postos de tomada de decisão, articulação das diversas vozes femininas no enfrentamento de todo tipo de violência, entre outros. 


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