14 de maio: da escravidão ao “vitimismo”. Notas sobre um diálogo com quem quer escutar

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14 de maio: da escravidão ao “vitimismo”. Notas sobre um diálogo com quem quer escutar

14 de maio: da escravidão ao “vitimismo”. Notas sobre um diálogo com quem quer escutar


Hoje, decorridos 132 anos da abolição da escravatura, em que pé nós estamos? Avanços, certamente, diante do que nós, os negros e negras, herdamos as ruas como serventia da casa, lugar que foi e ainda é, para muitos, a morada, o sustento, e até espaço para o fruir do nada fazer. 

Avançamos. Se considerarmos que quando denunciávamos as mazelas raciais perpetradas pelo racismo parecia que pregávamos sozinhos no deserto das nossas angústias, inquietações e injustiças. Havia os dissonantes aqui e acolá que se mostravam solidários e empáticos, pois consideravam justas as nossas reivindicações, principalmente, se fossem reparações culturais como ficou evidenciado durante os debates sobre a adoção das cotas raciais, quando fomos acusados de promover as divisões raciais, aliás comprou-se esse gato por lebre, ainda bem que alguns/algumas caíram em si, e a luta antirracista pode seguir, contando com sua valoração e contribuição para justiça social. Muitos perceberam que a solução da questão racial é incontornável para que o Brasil seja um país pleno e menos desigual. Entretanto, outros e outras tornaram-se verdadeiros conservadores do mito da democracia racial brasileira, conservadores raciais, e com agravante de serem supremacistas raciais, algo semelhante aos seus co-irmãos estadunidenses, com o detalhe, talvez sem importância, lá nas plagas americanas não seriam enquadrados com WASP( white anglo-saxon protestant), portanto não resistiriam ao enquadramento de latinos do aeroporto de Miami. 

De fato, a luta negra , avançou e mudou a cara da luta social, desconstruiu a narrativa do 13 de maio, recolocando o protagonismo negro no centro da abolição, e instituiu o 20 de novembro, o dia nacional da consciência negra, Zumbi dos Palmares, os heróis de Búzios entraram para o panteão dos heróis nacionais . A data é celebrada, não sem contrariedades, nos 4 cantos do Brasil. São inúmeras avanços, a Marcha Zumbi 300 anos, e posteriormente, o aumento expressivo de negros e negras nas universidades, nas publicas já somos maioria, a constitucionalidades das ações afirmativas(2012), e o do decreto que regulamenta a demarcação das terras quilombolas(2018), enfim os negros e as negras criando uma outra ordem social inclusiva. Apesar disso, convivemos com o genocídio da juventude negra, com os abissais números das desigualdades brasileiras, evidenciamos o caráter multidimensional da pobreza: é negra, feminina, juvenil, nordestina e nortista. Vale lembrar que a intelligentsia, o mainstream, somente reconheciam o caráter unidimensional da pobreza: é social sem cor. Contemporaneamente, o atual presidente, à época candidato, quando foi acusado de racista, por repertório as declarações e posicionamentos, saiu com essa “a minha cor é a cor do Brasil”, fez isto ao lado de um candidato, que mais tarde se tornaria um dos deputados mais votados. Mera, mera retórica, o tal “eu tenho até amigo negro”.

A história nos ensina: “primeiro nos ignoram, ridicularizam e depois nos combatem”, o movimento negro e o antirracismo estão vivenciando a fase do combate explícito. Os racistas não se escondem mais, e os conservadores raciais seguem em marcha, antes foram da convulsão coletiva durante a implantação das cotas na UERJ, manifestos de intelectuais e artistas, livros , a.ex, “ não somos racistas’, ações de inconstitucionalidades, todas derrubadas, e mais recentemente “uma gota de sangue”, resumindo fomos acusados de promover o racismo às avessas, e de promover divisões raciais. Parece piada, mas não é, o cinismo é tamanho, que tentaram até nos ensinar como deveríamos reagir, como se tivéssemos na fase 1 do filme clássico Queimadas, onde o ator Marlon Brando, interpretando um agente inglês ensina o escravizado José a atirar contra os portugueses, e assim chegar ao “poder”, entretanto, quando você ganha a liberdade e autonomia você não aceita ser tutelado e nova revolta acontece dessa vez contra as elites brancas locais e Marlon Brando vai e tenta convencê-lo a se entregar que seria perdoado etc. José diz: aprendi com você, se vocês me querem vivo, então preciso morrer. Se desejam minha morte, então terei que viver. Eles sabiam que José vivo poderia ser esquecido, morto seria logo, logo, herói, depois mártir, mito e depois uma lenda. Quero lembrar que já aprendemos atirar, faz muito tempo: escrevemos teses, dissertações , livros, fomos as ruas, fundamos instituições , estamos nas academias, na política, mesmo que ainda sub-representados/as, encontramos os nossos jeitos, nos dizia a já ancestral makota Valdina Pinto. 

Afinal, estamos lutando contra um fenômeno complexo que é mutante e mutagênico, o racismo e suas manifestações e particularidades do racismo anti-negro, que faz o negro ser um negro em qualquer lugar das Diásporas e no caso brasileiro, isso não é explicado pela condição de ter sido escravizado. Ser escravizado é uma condição, ser negro não, a realidade nua e crua, vivenciada pela população negra não é virtual, uma predisposição à inferioridade, isso é o racismo “cientifico” do século XIX que parecia sepultado, mas tem ganhado uma nova configuração, vem transmutado na nova acusação dos conservadores raciais de “vitimismo militante” um “crème de La crème” do racismo à brasileira. 

Consideram que as nossas reivindicações , as dores seculares, físicas e emocionais, as mortes em vida, os assassinatos de milhares de jovens pretos, invertendo diariamente o ciclo da vida em nossas famílias, a violência policial contra os jovens negros, seja em Salvador, em São Paulo, que nem em tempos de isolamento social há tréguas, esperava pelo Ifood na porta de casa e sofre abordagem, e foi encontrado horas depois morto, a cor das filas intermináveis da Caixa Econômica Federal, os números de infectados pela covid-19 com maior incidência sobre a população negra e consequentemente considerando as comorbidades, a tendência ser maior à letalidade, resumindo, vulgarmente, consideram estes tais, que é tudo “mimi” , ou seja, somos amalgamados com a dor, enfim gostamos do sofrimento, será que estão confundindo com sofrência. Não, certamente que não. Constitui-se uma crença para os conservadores raciais e defensores do pacto narcísico da branquitude que só enxergam o espelho e reconhecem somente as suas dores. Não se importam, naturalizam as mortes ainda dizem que todas as mortes importam , eu prefiro dizer que todas as vidas importam, e afirmar que as vidas negras importam não é divisionismo, muito pelo contrário, é desnaturalizar a violência sobre os corpos negros, devolvendo-lhes a humanidade que o racismo retira cotidianamente. 

Algo que levado ao limite se perfila ao lado dos supremacistas brancos que se consideram injustiçados, a base do eleitorado de Trump e sua versão local os bolsonaristas, “ poor white man, pobre homem branco” , estão sentindo o poder patriarcal do macho branco, alfa , hetero, ameaçado, diria melhorem, e insistem em querer recuperar “o terreno perdido”, perderam mesmo...melhorem, olhem ao redor. 

Tudo ainda muda para permanecer como está, mas Tempo, compositor de destinos, nos tem colocado a cada dia mais próximos das encruzilhadas. O que se coloca é: vamos com vocês ou apesar de vocês?! 

Em tempos de desconsideração das vidas daquelas e daqueles que contribuíram para um Brasil democrático e justo, segue meu reconhecimento não como um mero “o obituário” e sim como valorização da luta, não foi em vão. Minha homenagem especial, nesse 14 de maio, a incansável legião de militantes da luta negra e antirracista que doam cotidianamente sonhos, energias, tempo para que, em vida, possamos fazer da nação brasileira, uma nação plena em direitos, diversa que respeita as diferenças sem hierarquias. Para os que cruzaram a fronteira da vida, saíram apenas do nosso campo de visão, saibam, vocês seguem nos inspirando agora sem as barreiras do tempo e do espaço. Salve as pretas e pretos velhos! Os Santos, os Jesus, os Silva, os Bispo, os Rosário, os Conceição e outros tantos sobrenomes dos “13 de maio” que souberam transformar dor em música, em alegria, coragem e continuam nos protegendo e inspirando a seguir com a luta antirracista.



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