Ineildes Calheiro (Neide da Biko)

Ineildes Calheiro (Neide da Biko)

20/06/2023

Ineildes Calheiro (Neide da Biko)

Já sabemos do papel central realizado pelo Instituto Cultural Beneficente Steve Biko na formação educacional, política e racial de cerca de 700 jovens negros anualmente, pioneiro no país na preparação de pessoas negras para o ingresso no ensino superior e com uma trajetória de preocupação com a cidadania da comunidade negra, desde a sua criação, em 1992.
 
Desde os seus primeiros passos, o Instituto Steve Biko, já formou doutores, políticos e outros importantes agentes de multiplicação e transformação sócio-racial. Um exemplo disso é a pós-doutoranda, Ineildes Calheiro, conhecida pelos bikudos por “Neide da Biko”, que teve uma bela história de superação por meio do trabalho, da educação e do letramento racial do Instituto. Ex-office girl da Biko, Neide tem sido uma voz firme na luta contra o sexismo e o racismo no universo do futebol.
 
Filha do Dona Rocha e seu Justino, que já deixaram o plano terrestre, Neide tem 12 irmãos, mas desde cedo sempre soube que o esporte fazia parte da sua vida. Focou na carreira de jogadora e como árbitra pela Federação Baiana de Futebol (FBF) e pela Confederação Brasileira de Futebol (CBF) e conseguiu ultrapassar os muros sempre impostos à comunidade negra e periférica da academia. Após sua chegada no Steve Biko e o ingresso na faculdade de Educação Física, na Faculdade Unime, Neide nunca mais parou. Hoje a doutora multi-institucional e multidisciplinar pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), é PHD em difusão do conhecimento, realizando seus sonhos, dentre eles, ir corporalmente à territórios africanos. Através da pesquisa foi à Guiné-Bissau em março do ano corrente e trouxe muitos conhecimentos na “mala”, aberta de forma pioneira no Instituto Stive Biko, numa brilhante palestra na sua chegada de Guiné Bissau. Como ela diz: “A Biko primeiro!”. Somos gratxs por esse reconhecimento.
 
Com dois livros publicados: sobre mulheres árbitras de futebol e sexualidades na África, e um filme dirigido, sobre esta última temática, ainda não lançado, Neide (Ineildes Calheiro) atua nos campos científicos de humanidades, multi e interdisciplinar, realiza pesquisas sobre interseccionalidade no esporte - é uma cientista do esporte interseccionando gênero, raça, classe, sexualidades e território, trazendo experiências que dialogam com identidades, corpos e corporalidades, envolve cultura e educação por meio do esporte sociopolítico e queer; (auto) representações entre Brasil(is) e África(s); para além disso, pensa a divisão sexual e racial do trabalho; as desigualdades e relações de gênero e feminismos, focando o feminismo negro, africano e a decolonialidade. Em seus trabalhos, Neide é crítica ao norte-eurocentrismo, pautando na descolonização do pensamento em diálogo com a crítica cultural e o pós-colonial.
 
Uma vez apresentada, ninguém melhor do que a própria, para falar de sua trajetória, de suas andanças, pesquisas e produções. Assim sendo, convidamos você para conhecer um pouco mais da Neide da Biko, (Ineildes Calheiro) que retornou de Guiné-Bissau para o Ceará (ao pós-doutoramento na UNILAB - Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira.), antes, passando em sua “casa Salvador” para participar do projeto Diálogos Estruturantes, que aconteceu no último sábado, 08/07/23, na sede do Instituto Steve Biko, dentro da programação do Julho das Pretas.

ICSB: Como você conheceu o Instituto Cultural Steve Biko? 

Ineildes Calheiro: Meu primeiro contato na Biko foi em 1999 como office girl e posteriormente como aluna do pré-vestibular. Eu conheci o Steve Biko, quando tinha acabado de mudar para a rua do Paço, no Pelourinho. Eu estava procurando um emprego, nunca tinha trabalhado, mas eu tinha feito muitos bicos e estava colocando uns currículos. Um dia estava estudando na biblioteca do Centro de Estudos Afro Oriental (CEAO) quando conheci o padre Fideli, um africano que foi um grande parceiro do Instituto e, através dele, conheci a Biko. Eu tinha 23 ou 24 anos de idade. Em nossa conversa, quando eu estava no Ceao (era no Pelourinho) pesquisando temas de África para conhecer um pouco e para me inspirar artisticamente, pois eu era do Bloco Malê Debalê (Itapuã) e gostava de compor músicas também. 

O Padre Fideli me perguntou se eu conhecia o Steve Biko e me deu o endereço aqui dos Barris, antiga sede do Instituto. Imediatamente fui lá e tinha um informe na porta avisando que tinha mudado para a rua do Paço, quando eu fui até lá, e tinha um informe “precisamos de office boy e secretária de administração” (foi mais ou menos isso), aí eu mudei de ideia e decidi que não queria estudar, queria trabalhar, preparei um currículo (sem nada de experiências) e entreguei, logo depois realizei a entrevista. Como não me senti preparada para fazer a seleção para vaga de secretária, eu resolvi fazer para office boy, no caso, office girl. 

No dia da entrevista, consegui transporte com um amigo (Jacó) e fui. Eu morava em Itapuã. Na fila, só tinha homem, eu era a única mulher. A entrevista foi realizada pelas diretoras da Biko, Ceres Santos e Meire Souza. Foi um processo interessante, onde elas me disseram que era um trabalho duro para mulheres, que andava muito, subia escadarias, tinha que pegar peso, fazer tudo, e elas achavam que, talvez, para mim não desse certo. Mas aí eu perguntei: correr é melhor? já que ia andar muito. Eu sempre gostei de brincar e também propus a elas a possibilidade de me dar a oportunidade por 15 dias, sem me pagar nada, apenas me dando o transporte, e se elas não gostassem eu saíria e a Biko não me devia nada. Estava tudo certo. E contei um pouco de minha vida, família desempregada, eu era atleta, jogava bola. Apitava jogos, então, andar não era problema para mim. 
Nesse momento eu achei que elas gostaram, porque cochicharam uma com a outra “é ela!”. Se não foi isso, eu ouvi isso. O que me fez sentir que ancestralmente eu toquei no coração delas e eu saí dali muito feliz. 

Alguns dias depois recebi ligação pedindo que eu fosse ao Instituto Steve Biko com os documentos e eu comecei imediatamente. Antes de completar uma semana (eu acho), nem chegou aos 15 dias como eu tinha combinado, já pediram a minha carteira para assinar. Foi o presente que dei à minha mãe. Tudo ocorreu bem no aniversário dela,18 de abril. Acho que eu comecei na Biko dia 19.

Eu tenho o Steve Biko como meu primeiro emprego, foi o trabalho que eu fiquei 7 anos como office girl e não só como office girl, mas eu também tive a experiência de ser auxiliar administrativo, substituí a secretária algumas vezes, em suas férias, comecei a aprender muita coisa na Biko, aprendi tecnologia, utilizar as máquinas eletrônicas dos bancos, fazer depósitos, que eu não conhecia essas coisas na rua, na rua eu só conhecia o futebol. Falar ao telefone, ligar para fazer cobranças aos alunos e agendar com os sócios contribuintes, fazer contato com celebridades negras, como a reitora Ivete Sacramento, e tantas pessoas, não somente negras. Eu fui a Girl xique. Comecei a conhecer pessoas importantes, a reitora da Universidade do Estado da Bahia (Uneb); o ex-diretor da faculdade dos Barris, doutor Crispim. Eu cresci muito no Steve Biko, então, só para dar uma palhinha de como foi minha entrada no Instituto Steve Biko. E iniciei meu processo de educação racial e intelectual. Tornei-me negra!

“O biologicismo e o racismo velado no esporte caiu por terra! Participação não é inclusão!!”

ICSB: Você começou como office girl, passou pela parte administrativa e depois foi estudante e mais tarde adentrou no universo acadêmico, como foi este processo de crescimento? 

Ineildes Calheiro: Na verdade, foram muitas experiências que eu tive na Steve Biko, inclusive de movimento, o único lugar onde eu comecei a ver os movimentos negros, como eu trabalhava como office girl, eu estava envolvida em tudo, dessa forma, eu participei de tudo que aconteceu na Bahia, em tudo que Biko estava envolvida, inclusive eu acompanhei a implantação dos cursinhos pré-vestibular do Steve Biko. 

Quando eu entrei, como office girl, eu não tinha nenhum conhecimento intelectual, então eu ia vendo e aprendendo com o movimento do Steve Biko, com aquilo que eu estava vendo nas reuniões. Eu participei das aulas inaugurais da Steve Biko, sete anos, sete aulas, e essas aulas inaugurais eram como congressos (eu não sei porque não se chama congresso), eu tinha que providenciar as coisas, os espaços de realização, equipamentos quando necessários, material de limpeza, e uma vez que foi realizado na reitoria da UFBA, onde eu tive que articular com o reitor, funcionários e, na hora do evento, eu estava lá sentadinha ouvindo e aprendendo. Ninguém, nem eu mesma sabia o que eu estava juntando na memória. 

Eu também sofri racismo neste trabalho como office girl. Eu tinha a senha da conta do Instituto no banco do Brasil, na Baixa dos Sapateiros e na Ondina. Nesta primeira agência tinha um gerente, homem branco, descendente de asiáticos, um super racista e eu nunca levei isso para o instituto, na época eu era muito verde, eu tinha medo de criar problemas, como se diz, e como fazem agente silenciar, então eu ia superando os racismos. 

Quando eu passei na faculdade particular, na UNIME, de Lauro de Freitas (região metropolitana de Salvador), eu falei com as pessoas da coordenação, com relação aos meus horários de trabalho, a partir dali, aí eles mandaram eu ver qual o horário eu tinha, então eles deixaram eu dizer o horário que eu tinha tempo para o trabalho na Steve Biko. Então eu estudava de manhã, saia da escola por volta das 12h30 e ia para a Steve Biko e chegava 2 horas da tarde, às vezes eu nem comia, para não atrasar muito. Eu ficava à tarde e depois eu ia lá para cima para o prédio para cumprir a minha carga horária. E depois eu fiquei só a noite. Durante o horário das aulas e fechava a sede. Uma vez foi em Brotas, numa escola particular, parceira, outra vez foi no Barbalho, na escola estadual, e eu só fechava nossos armários e pronto, em certo período foi na Rua Chile e no demais na nossa sede. E nesses momentos à noite, que eu fiquei como auxiliar administrativo e mais tarde também auxiliava na parte pedagógica, aprendi a construção de grade escolar, grade horária, currículo pedagógico. Tenho um pouco de noção sobre isso.

ICSB: E o esporte, ele entrou antes ou depois desta trajetória? 

Neide Calheiro: O esporte foi o carro chefe da minha vida. Eu sempre fui esportista, sempre fui masculinizada. Eu tenho 12 irmãos com mais uma sobrinha que minha mãe criou e é considerada minha irmã. São 6 homens e 6 mulheres, então os homens brincavam de bola, de gude, de descer a rua de patinete e eu estava no meio das brincadeiras deles. As meninas gostavam de bonequinhas, faziam casinha, no início eu gostava, mas depois fui jogar bola na frente de casa, e meus irmãos me ensinaram com os moleques da rua, que também eram amigos deles e ficamos todos misturados e eu era a única menina que estava no meio. 

Nesse período eu fui aprendendo a gostar de esporte. Eu sou uma pessoa que venço todos os medos, pois o esporte me ensinou isso. Eu virei uma pessoa que gosto de rua, de esporte, fiquei forte e autônoma. O esporte veio antes, depois eu virei jogadora de futebol, mas ser jogadora é uma coisa de que eu precisava de algum apoio para dar certo, pois o futebol na Bahia e no Brasil sempre foi difícil para as mulheres e nunca teve apoio. 

Nós tínhamos que chegar nos treinos, precisava ter transportes, já andei muito na traseira nos ônibus, (nos antigos ônibus, em Salvador, era uma forma de não pagar a passagem, não passando a catraca) eu fazia um monte de coisa para ir para os jogos e isso não estava sendo legal para mim, eu lavava roupa de ganho, tentei ser empregada doméstica, mas teve a questão da tentativa de abuso sexual, aí eu cair fora. Como esportista eu luto, eu brigo, eu me defendo. Aí eu fiquei nessa luta, até que, eu vi que o futebol, uma coisa que eu sempre gostei, não pagava, muito pelo contrário, a gente fazia um investimento para estar no futebol. E eu fui indo e, ao mesmo tempo, sempre estava procurando outra coisa. Eu jogava por esporte mesmo, por hobby, não para ganhar algum dinheiro, porque não pagava, eram anos 90. Mas, ainda é assim para as mulheres, pouco mudou. Aliás, para as mulheres negras não mudou nada. E isso falo com propriedade de pesquisadora.

Neste tempo, anos 1996, abriu inscrição para o curso de arbitragem de futebol pela prefeitura, aí eu fiz o curso de arbitra de futebol e me tornei arbitra. Eu ficava jogando bola, que é uma coisa que eu sempre gostei, e apitava. Em 2002 tornei-me profissional pela Federação Baiana de Futebol (FBF), até que em um certo momento um diretor, o Paim, falou que eu precisava escolher “jogar ou apitar?”. Mas este momento de decisão chegou e eu tive que, dificilmente, largar de jogar para virar só árbitra. Eu resolvi fazer o curso da Federação, um curso atrelado à Universidade Católica do Salvador (UCSAL), contudo, para fazer este curso tinha que ter segundo grau, por isso não fiz antes, eu não tinha. 

O problema da questão racial, no esporte, principalmente no futebol, que é um esporte negro na Bahia, e você joga ou estuda, no caso dos negros, vão preferir jogar, porque existe a esperança de que você vai subir na vida rapidinho, então, eles abandonam os estudos. Comigo não foi diferente, pois eu também abandonei os estudos para jogar. Digo isso porque quando tentei fazer o curso da federação para ser profissional eles exigiam segundo grau, então eu fui fazer o segundo grau.

Em 1999. Ano que adentrei à Biko, também me matriculei para concluir o segundo grau e finalizei. Muita coisa junta. Dois anos depois fiz o curso da federação, de arbitragem, na sequência eu passei na faculdade de Educação Física. Me tornei árbitra e universitária e continuei no Steve Biko nos horários opostos aos estudos, eu trabalhava lá. Em 2007 eu finalizei meu ciclo no Steve Biko, pois assim que eu me formei na graduação, final de 2006, eu achei trabalho de professora de Educação Física, com contrato temporário e também fui selecionada para ser árbitra nacional da CBF.
“Então teve progresso de gênero, porque essa mulher é 
branca e loira”
 
ICSB: Você foi jogadora de futebol e depois se tornou árbitra. As pessoas percebem o racismo no esporte, no futebol, pelo viés do jogador que sofre racismo nos jogos. racismo que vem de torcedores e também entre os jogadores, mas muito pouco se discute sobre o racismo no esporte. Como você percebeu o racismo, primeiro como jogadora, depois como árbitra? 

Ineildes Calheiro: A gente já tem um problema de racismo estrutural, onde não se insere mulheres negras nesses espaços, é um ponto. Então, supõe-se que não há racismo nesses espaços - institucional esportivo, e isso contribui para não ser discutido nesta esfera de trabalho. Mas é porque não tem ninguém lá para sofrer racismo. Digo isso nos setores de poder, como treinador, gestor, e árbitros no Brasil à dentro. Quando se trata de mulheres, a exclusão ainda é mais explícita. O racismo direto aos jogadores negros, todos vocês veem e conhecem muito bem.

O racismo a gente sofre indiretamente, por não estar lá, incluído, incluída, que é o racismo estrutural. O racismo estrutural é a consequência da exclusão racial, isso é justamente o que eu pesquiso dentro do esporte. Então, a partir do momento que eu entrei no jogo, busquei entender o jogo. Minha presença foi um espanto para eles. Os dirigentes, o mundo do esporte. Você tem uma mulher preta árbitra de futebol e competente física e tecnicamente. O que fazer? Eles não sabiam como lidar com isso. O que eles faziam era me colocar de escanteio e eu não sabia que aquilo ali era racismo, porque é muito velado e é muito fácil de velar. É mais fácil você perceber o racismo em outras instituições, em instituições de esporte é mais difícil, porque é um lugar de macho, não tem mulher, dessa forma, eles vão dizer que ela não entra porque ela é mulher e porque há diferenças biológicas, não porque é mulher e negra. E todo mundo engole essa justificativa pela questão biológica que esconde o racismo e múltiplas opressões. E era esse o discurso, até porque eu não era a única mulher, então tinha um problema de gênero muito grande porque ele já tem um número muito ínfimo de mulheres. 

Quando eu entrei como árbitra, eu encontrei em torno de 4 mulheres, quando eu fiz a pesquisa, na graduação, sobre árbitra de futebol, (2002-2006), os representantes da Federação Baiana de Futebol (FBF), me mostraram uma tabela de 16 mulheres, então eu me perguntei, cadê essas mulheres 16 mulheres? Tinham inscritas, mas não estavam trabalhando. E você já vê que é um problema de gênero, então para você descobrir um problema racial você tem que passar pela interseccionalidade, o que eu descobri depois que fiz o mestrado, porque na graduação eu não tinha noção de interseccionalidade, por não haver esse debate, então eu não sabia exatamente que estava sofrendo racismo, mas acreditava vivia o mesmo que todas as outras que estavam ali vivendo, a questão do sexismo, da violência do gênero simbólica. As que estavam ali já tinham muito mais experiências do que eu e não entravam nos jogos. Dessa forma, apurar o racismo foi um trabalho muito difícil. E claro, eles não me toleraram. Por isso estou fora da arbitragem, sai precoce, antes de completar a idade limite (que era 45 anos), saí com 37, excluída. Uma exclusão perfeita. Eles me tiraram das escalas de jogos e pronto. É o poder e a dominação masculina.

Apenas em 2014, no mestrado, eu descobri o racismo. Eu já tinha a pesquisa básica da graduação, onde constatei uma alegação institucional, em que a não inclusão de gênero era um problema nossos, das mulheres, por sermos mulheres e que não correm iguais aos homens, que as mulheres eram diferentes biologicamente e não têm como acompanhar os homens que estão correndo muito, etc, então vocês não entram por isso. Era essa a leitura e o discurso. Eu tentei combater aquele argumento, pois não era verdadeiro, mas a gente não tinha como provar. E não era verdadeiro, pois a gente jogava bola os 90 minutos, o mesmo tempo que os homens jogam, então, se a mulher aguentava jogar bola os 90 minutos, a árbitra também poderia apitar 90 minutos, e isso foi comprovado com as primeiras árbitras. Então, obviamente isso aí é uma conversa que não dá certo. O biologicismo e o racismo velado no esporte caiu por terra!

Então, no mestrado, estudando a interseccionalidade foi que eu juntei as duas coisas, o conhecimento sobre o corpo, notei que a biologia era justificada para excluir as mulheres e aliei com a questão dos estudos raciais, onde eu vi que as mulheres que entravam para suprir a questão de gênero, eram sempre mulheres de pele clara, foi aí eu comecei a perceber o racismo. Contudo, houve vários movimentos na arbitragem, onde as mulheres invadiram a arbitragem no Brasil, em 2007, quando a CBF cria um grupo só de mulheres e entraram quase 100 mulheres árbitras no quadro nacional, foi quando eu entrei, mas eu já arbitrava profissionalmente desde 2002. Porém, a expectativa que eu tinha de abertura do campo para mim, não aconteceu, abriu para mulheres de vários estados do Brasil, que tinham a pele clara, aí foi fácil para mim perceber, descobrir e pesquisar sobre o racismo. 

“Tornei-me negra! Me tornar negra foi mais que me tornar doutora!”

ICSB: E de lá para cá, podemos considerar que houve avanços? O que está faltando ainda para esta evolução? 

Ineildes Calheiro: Tivemos muitas evoluções. Porém, a questão do racismo, não sou eu quem vai dizer se houve alguma evolução do racismo, eu prefiro que perguntem a Ana Célia da silva, que é uma pesquisadora sobre racismo. O que posso dizer é que o racismo vem mudando de forma, fica ludibriando a gente e pensamos que melhorou, quando de surpresa tomamos uma porrada. Quando a lei começa a ser segura, as pessoas começam a se segurar, quando a lei dá uma brecha, elas começam a se mostrar. Um exemplo, a gente tem o racismo no esporte, nos estádios, como você sabe e todo dia acontece. Contudo, quando a gente teve aqui a Copa das Confederações, em 2013, anterior a Copa do Mundo, em 2014, a Luiza Bairros, uma das nossas militantes do movimento negro (já em plano de vida superior), uma mulher muito potente, entrou também no mundo da copa e questionou como ia ficar a questão do racismo nos jogos e como seria resolvido para evitar a ocorrência. E foi formulada uma lei vigente durante a Copa das Confederações e a Copa do Mundo. Se houvesse racismo, a seleção seria excluída da competição. Então, ninguém discriminava abertamente, não houve casos de racismo registrados. E nós não vimos acontecer. Eu procurei analisar para ver se a gente tinha, eu não vi racismo explícito, inclusive denúncias, porque a lei entendeu que não queria dinheiro de jogador, porque ninguém é mais rico que jogador, pois se você pedir dinheiro ele te xinga, acaba com você, mas paga. Então, a Luiza Bairro conhecia muito bem como isso funcionava, com sua comitiva, ela prestou atenção nisso. E disse que não queremos dinheiro, mas sim uma punição para que realmente isso seja efetivo, como foi. 

Quando acabou a Copa do Mundo o racismo voltou a acontecer em vários jogos, várias competições no Brasil. E também, posteriormente a Luiza partiu do mundo terrestre. Precisamos destas Luizas. Acontece que o racismo muda de forma, mesmo tendo muitas inclusões, mas tivemos participação ou inclusão? Porque, apesar de você ter mulheres negras hoje na liderança de alguns espaços, inclusive no esporte, de forma muito acanhada, até porque a gente tem essa polaridade de raça, de cor. Você vai encontrar mulher da tua cor, de cabelo menos encaracolado, ela vai dizer eu sou negra, ela não é branca, então ela também é negra, e você vai encontrar mulheres assim. Na polarização racial, se tem uma mulher da minha cor preta, ninguém vai oportunizá-la para dirigir nenhum time, ser treinadora ou atuar na gestão.

Em 2016, pela primeira vez no Brasil, tivemos uma mulher treinadora da seleção das mulheres, nunca aconteceu, então, teve progresso de gênero, porque essa mulher é branca e loira. Nas minhas pesquisas de doutorado eu constatei que têm mulheres treinadoras negras no Nordeste e na Bahia, contudo, elas não tiveram oportunidades, ninguém nem procura por elas, nem por seus currículos, já vai incluindo a loira, a branca, porque têm certeza que elas têm a competência. Elas têm sim, mas precisavam procurar também as demais, procurar o currículo, ver a competência, o currículo e oportunizar todas as raças. Então teve avanços, mas de gênero. Na questão racial, a gente teve uma falsa inclusão, temos participação de mulheres negras, mas não temos inclusão. Participação não é inclusão! 

ICSB: Como você vê a chegada de um nordestino, baiano na CBF? Acha que vai ter bons frutos? 

Ineildes Calheiro: O presidente Ednaldo Rodrigues é uma pessoa que eu acompanhei durante muitos anos. Quando ele foi presidente da Federação, na época em que eu cheguei, ele já estava, então se trata de uma relação de 15 anos, porque eu entrei em 2002 na Federação e saí em 2014/2015. O presidente Ednaldo Rodrigues tinha muitos projetos de melhorias para o esporte, muitas coisas aconteceram aqui na gestão dele. Deve ter sido bom para alguns e algumas e ruim para outros e outras. 

Eu vejo que ele tem muitos projetos futuros, tomara que ele pense da raça. Ele foi uma representação importante para o gênero. Em 2007, pela primeira vez uma mulher apitou um jogo da Federação Baiana, jogo masculino, a Rosana Vigas. E eu sei que é uma questão que se relaciona com minha pesquisa de graduação, pois quando eu terminei a graduação, no final de 2006, eu entreguei uma cópia da monografia para ele. No início de 2007 tivemos o campeonato baiano, nesse período, anteriormente, tivemos um encontro de árbitros e árbitras e tinha a conhecida árbitra, Ana Paula Oliveira, de São Paulo. Mulher branca. Neste encontro, ele disse em público que recebeu uma pesquisa que tinha muita verdade e me citou. Na pesquisa eu reforçava a competência das mulheres e que nós podíamos fazer o mesmo que os homens e, algumas, até mais do que alguns homens e, mesmo assim, elas não entravam no masculino profissional. Naquele momento ele disse que via aquela pesquisa com bons olhos e, a partir daquele momento, ia quebrar aquele jejum de gênero. E cumpriu com a promessa imediatamente. 

Então, naquele ano, a Rosana apitou o jogo realizado entre Vitória e Poções, no Barradão, (Estádio Manoel Barradas) e a própria Ana Paula foi convidada para bandeirar. O segundo bandeira foi um homem (Acho que Kleber Moradillo) e a quarta árbitra foi a Daniela, baiana, mulher negra (de pele preta) que também foi para a FIFA. Excluída logo em seguida do quadro. Eu também trabalhei em jogos masculinos, de juniores, que era compatível com a minha competência naquele momento. Dessa forma, ele teve muita importância para a questão de gênero, a questão do campeonato das mulheres, ele tem feito com que os campeonatos femininos fossem mantidos, que já era para ter acabado aqui na Bahia, por falta de apoios e de patrocínios. Então eu testemunhei que ele contribuiu, sempre mantendo as mulheres ali. Poderia ser melhor, poderia, mas foi daquele jeito, sendo um homem negro poderia prestar atenção nas coisas que prejudicaram mulheres negras, como exclusões, mas ele teve muitas contribuições boas como Presidente da FBF.

Hoje ele está como Presidente da CBF, é um ganho para nós negros e negras, em termos de raça. Acho que tem duas questões para refletir: tem um homem do nordeste que tem uma experiência boa com a questão do gênero e regional. Deve ampliar esse olhar, pois ele sabe muito bem que o Nordeste é mais prejudicado na arbitragem e as mulheres também, e que as mulheres negras deve ser um projeto da CBF. Como jogadoras e na parte de gestão. Talvez ele pense em melhorar isso, se essa questão o incomodar. Mudando a forma, inclusive dos sorteios para atuar nos jogos. Eu não estou acompanhando de perto, mais. Pois minha preocupação aumentou em termos de categoria: sexualidades/LBGTQIA+.

Acho que que é primeiro o (homem) negro numa liderança dessa, é um cargo muito grande que o outro, Ricardo Teixeira deixou transparecer que era cargo vitalício, se tornando um suposto dono de uma instituição que se confundem como privada, mas não é. 

No caso do presidente Ednaldo Rodrigues, você tem duas questões: um homem nordestino e negro no poder – na CBF. Agora, claro, a gente precisa de injetar negros brasileiros como árbitros na FIFA, negros treinadores, mulheres negras nestes espaços, enegrecer as jogadoras da seleção e dos estados, a gente precisa que ele preste atenção nesta questão.

ICSB: Nos seus trabalhos você também faz a relação entre raça e orientação sexual. Como ela é percebida dentro desses espaços como uma mulher negra e lésbica?

Ineildes Calheiro: Eu acho que para quem sofre o racismo o resto é resto. A gente trabalha com a interseccionalidade para poder entender que está tudo junto, você não consegue dosar o que é pior: se é o racismo, se é a homofobia, se é a violência de gênero, se é o sexismo, quando a gente sente tudo no corpo, e você só sabe dosar a quantidade do sofrimento, se você só tem uma opressão.

Para eu chegar aqui e dizer para você que eu estou feliz, e nem da vida eu apanhei, é apenas a forma como eu transformei essas questões, porque a ancestralidade sempre me colocou no colo, sempre me tratou de uma forma brilhante para que eu pudesse ser bem protegida e perceber isso.

A gente tem esse problema interseccionado, por ser preta e dentro desta questão sexual, porque é preta e ainda é homossexual. Então o homem preto gay sofre terrivelmente - é preto e ainda é viado, todo mundo está vendo que são duas opressões, e a mulher, é preta, mulher, e ainda é viada, então você tem três opressões; e quando você é preta, mulher, viada, e ainda é pobre, tudo isso em um corpo só. É a múltipla opressão. Para mim, nessa carga de discriminações que a gente conhece, tem algo que dói mais: é ser chamado de macaco, para mim dói mais, porque nos mantém no lugar de animais irracionais, e essa questão de humanização ainda não foi superada pela cultura racista.

ICSB: Nesses dias você esteve no evento na Biko. Qual foi a sua expectativa para este retorno depois de tanto tempo?

Neide / Ineildes Calheiro: Eu acho que foi bom para mim e bom para a Biko. O Steve Biko tá vendo o fruto, o resultado do trabalho que ela faz. É um trabalho que, em todo lugar que eu vou eu falo. Se você ler meu livro, o livro da dissertação que eu publiquei em 2017, eu falo um pouquinho da minha passagem pela Steve Biko, com a Ana Célia da Silva, a primeiro contato que eu tive de intelectual negra e o livro que ela tinha na época, que ela estava terminando o doutorado, senão me engano em 2002. E hoje, que minha trajetória tá chegando em uma reta importante, onde, como mulher negra, a gente procura um momento de estabilidade, isso ainda não aconteceu, estou em busca de trabalho, apesar de tantos títulos e competências, mas mostrar para as pessoas que acompanham o Steve Biko, a todos os estudantes e ao estado, que isso dar certo, até para darem mais valor e apoio. Certa de que uma parte depende da gente, os beneficiados, estudantes, e uma parte depende do estado. E o Steve Biko tem mais de 3 décadas fazendo essa parte que o estado não faz. Você negra/negro também tem que ter o seu sonho, tem que acreditar e lutar por ele. E através do Steve Biko, muitas coisas aconteceram comigo. Coisas boas.

Então a Steve Biko está na minha memória, hoje tenho 47 anos. Quando eu entrei na Biko, eu não era uma mulher negra, eu tornei-me negra, eu acho que eu sou um caso que representa uma grande parcela da população negra no Brasil, que é você não se reconhecer negra, você ser uma pessoa assimilada. Eu era aquela menina que espichava o cavei com ferro de chapa e não me importava com que minha orelha ficasse queimada, nem que minha nuca ficasse queimada, eu queria que as pessoas vissem meu cabelo liso, aí eu passei por isso desde criança, desde os 10 anos de idade. Eu nunca conheci meu cabelo, eu só vim conhecer meu cabelo quando eu vim para a biko e eu comecei a usar tranças, porque você vai quebrando aos poucos essa questão, que é cultural. 

Na Steve Biko tive uma das maiores conquistas da minha vida, me tornar negra, foi mais que me tornar doutora, porque não é a mesma coisa que ser uma doutora negra de cabeça branca, é muito diferente, por isso, eu digo que sou muito feliz, sou muito tranquila, porque eu cresci na experiência, na intelectualidade, e o Steve Biko foi uma das portas. Eu também tive o futebol que foi uma das portas e consegui fazer essa aliança. Digo, eu, mas na verdade reconheço o papel da ancestralidade, que fez o meu caminho, e hoje me sinto honrada. Retornei recentemente de Guiné-Bissau, estava lá mediante pesquisas, e vim dizer ao Instituto Steve Biko onde eu estou, como estou, falar da minha trajetória e as produções, agradecer e dizer: dá certo!

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