Mel Nascimento: depois da Biko eu passei a compreender a força da coletividade na luta preta

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Mel Nascimento: depois da Biko eu passei a compreender a força da coletividade na luta preta

17/04/2024

Mel Nascimento: depois da Biko eu passei a compreender a força da coletividade na luta preta

Imagem: Arquvo pessoal

Nascida e criada no bairro da Vila Laura, em Salvador, Tatiana Nascimento, que adotou o pseudônimo de Mel Nascimento, é uma mulher que vai atrás do que quer. Uma mulher que superou questões que, infelizmente, são comuns na população negra brasileira: a busca da sua identidade em um Estado racista e classista.

Depois de transpor os preconceitos, por ser uma criança negra vivendo e estudando em ambientes com maioria branca, Mel Nascimento, hoje é Bacharela em Estudos de Gênero e Diversidade e doutoranda em História (UFBA). E conta que teve sua vida transformada por dois importantes acontecimentos: a entrada no Instituto Cultural Steve Biko, em 2010, e a maternidade, aos 19 anos.

Confira na íntegra a entrevista e comente o que achou!

ICSB: Quem é Tatiana Nascimento e como “Mel” passou a existir?

Mel Nascimento: Tatiana foi uma criança/menina/adolescente com questões muito específicas sobre sua existência. Existe uma mudança brusca de personalidade na minha vida, a Tatiana criança até os sete anos foi uma menina muito, muito espontânea e feliz, apesar de já notar que algumas pessoas me observam de uma forma diferente. À medida que fui crescendo foi ficando mais nítido pra mim que eu era diferente das outras meninas do meu bairro e escola, cresci em um bairro que à época estava em desenvolvimento, hoje conhecido como Vila Laura, eu e meus irmãos éramos umas das poucas famílias negras que habitavam naquele lugar. Passamos a infância estudando em escolas particulares que, também possuía um número reduzido de estudantes pretos, essa percepção foi extremamente dolorosa pra mim, foram anos difíceis eu não queria ser a única menina negra dos locais, eu queria parecer com as outras meninas.

A adolescência foi pior, me tornei uma moça cheia de traumas e temores, eu só queria ser como todo mundo, mas minha presença negra, mesmo que em silêncio incomodava, tive que me virar no mundo, a escola se tornou um espaço de dor e eu comecei a me distanciar daquele mundo (passei muitos anos sem estudar). Minha paixão pela literatura e pela música me salvou de muita coisa, nas artes eu encontrava a esperança de dias melhores, com 17 anos comecei a cantar em uma banda, foi quando adotei o nome “Mel”, que se encaixou perfeitamente com aquela menina do passado que era feliz na sua primeira infância. Aos 19 anos fiquei grávida do meu filho único, Breno Luiz, foi quando minha vida se transformou completamente pra melhor, pra infinitamente melhor!

ICSB: Voltando-se para a sua produção acadêmica, você começou seu trabalho de mestrado falando de feminicídio. Por que escolheu essa temática?

Mel Nascimento: Foi na graduação que comecei a falar sobre feminicídio, falar de mulheres e violência na sociedade brasileira se mostrou um caminho comum na minha trajetória como estudante de Gênero e Diversidade na Universidade Federal da Bahia. Trabalhei (estágio) durante dois anos no Ministério Público da Bahia (MP-BA), com atendimento e pesquisa sobre mulheres em situação de violência. Foi nesse período que decidi que precisava me aprofundar no tema e contar essas histórias, decisão que mudou minha trajetória e me fez perceber a importância de se falar sobre violência e mulheres, principalmente para que o tema seja pauta constante até que medidas mais efetivas sejam implementadas, a fim de que se protejam as mulheres do país.

Imagem: Arquivo pessoal

 

 

ICSB: No Brasil, de março de 2015 a dezembro de 2023, 10.655 mulheres foram vítimas de feminicídio+ (quando a lei sobre o tema foi criada). Você estudiosa, como avalia esse aumento da violência contra a mulher?

Mel Nascimento: As ações que existem ainda não dão conta de proteger milhares de mulheres brasileiras vítimas de violência, percebam que agressores em geral (companheiros, namorados ou membros da família), cometem reiteradas agressões antes de cometer o feminicídio, na minha opinião, é essencial que as medidas mais severas sejam tomadas nesse momento. Os agressores certamente são potências feminicídas, a Ronda Maria da Penha  ++ é um dos bons exemplos de coibição de assassinatos de mulheres, porém são necessárias muitas outras ações para proteger as vítimas de violência doméstica.

ICSB: Alguns especialistas avaliam que não é aumento, mas fatores como subnotificação e visibilização pelos flagrantes em redes. Você concorda?

Mel Nascimento: Vejam bem, em 2023 uma pesquisa publicada no site do Brasil de Fato, revela que, no ano de 2023, o aumento dos números de feminicídios no Brasil foi de 23%, na verdade muitas pesquisas afirmam que a subnotificação na verdade não revela o número real de feminicídios no país que, ao que tudo indica, é bem maior. No Brasil se mata muito mais mulheres do que está posto nos números apresentados.

ICSB: As mulheres têm mais noção de como se defenderem, a partir da Lei Maria da Penha e da Lei do Feminicídio (Lei 13.104/15)?

Mel Nascimento: Sim, devido as campanhas adotadas pelo Estado brasileiro ocorreu um aumento de mulheres conscientes dos seus direitos.

ICSB: Ellen Ribeiro, Eliza Samudio, Maiara Amaral e Beatriz Nascimento. Diante de tantos casos de feminicídios no País, o que mais te chamou a atenção nestes três casos para balizar sua pesquisa de mestrado? Como consultar a sua dissertação?

Mel Nascimento: De tudo que me chamou atenção destaco algumas mudanças na sociedade brasileira desde quando comecei a pesquisar sobre o tema. Meu TCC, que começou a ser elaborado em 2017, possui um cenário diferente do ano de 2021 quando comecei a desenvolver a pesquisa de mestrado que migrou para o doutorado. Em 2017 foi muito difícil encontrar nos noticiários, crimes de feminicídio de mulheres negras de grande repercussão na mídia. Em 2018, com o assassinato de Marielle, essa negligência midiática passa por uma mudança brusca, o feminicídio político da Marielle mexeu com várias instâncias da sociedade incluindo a mídia brasileira e internacional.

Na minha qualificação da dissertação eu fui indicada para continuar pesquisando sobre a produção intelectual de Beatriz Nascimento e Marielle Franco no doutorado (título: Beatriz Nascimento, Marielle Franco: a importância da produção intelectual de uma historiadora e uma socióloga para história do Brasil), ou seja, eu não terminei a dissertação porque a mesma vai virar uma tese. Mas o TCC está no repositório da UFBA, com o título de: Mídia e Feminicídio: uma relação perversa entre os meios de comunicação e os assassinatos de mulheres no Brasil.

Confira o Trabalho de Conclusão de Curso de Mel Nascimento: Mídia e Feminicídio: uma relação perversa entre os meios de comunicação e a morte de mulheres no Brasil

ICSB: Como nós, sobretudo comunidade negra, podemos observar essa relação “perversa” trazida pela mídia no tratamento de mortes de mulheres por feminicídio?

Mel Nascimento: São inúmeros os casos que trazem a relação perversa entre uma parte da mídia e o crime de feminicídio, um dos casos mais emblemáticos foi o caso de Eloá Cristina, mantida em cárcere privado por seu ex-namorado Lindemberg Alves Fernandes. O sequestro e negociação com o criminoso foi transmitido ao vivo por vários veículos da mídia, com ares de “espetáculo”. O desfecho do caso Eloá foi transmitido ao vivo por várias emissoras de TV, a mídia fez exatamente o papel que o Estado durante muito tempo exerceu e ainda exerce: o de desqualificar o crime, minimizar a violência e deixar a vítima vulnerável, à mercê do feminicida.

Segue trecho do meu trabalho de graduação que define o que acho da relação que alguns veículos da mídia estabelece como a morte de mulheres no Brasil: Ao iniciar os estudos relacionados à mídia e feminicídio, me deparei com questões que envolvem narrativas e imagens veiculadas na mídia nos crimes contra mulheres, uma das impressões mais marcantes se refere ao fato que o poder masculino sobre as mulheres vítimas de violência é uma ideologia aceita pelo meio social e legitimada pelos meios de comunicação.

ICSB: A faculdade de comunicação tem estudos no que se refere a abordagem da população negra pela mídia, mas nada relacionada à questão de gênero/raça. Você teve algum diálogo com esse campo para tentar entender ou desconstruir essa abordagem?

Mel Nascimento: Não tive esse contato mais aprofundado, na época da pesquisa meu foco foi analisar as matérias de revistas e jornais que possuíam no seu bojo narrativo misoginia e formas de “suavização” do crime, a exemplo da conotação de “crimes de paixão”, associados ao feminicídio. O adequado (como já citado por muitos pesquisadores) é classificar essas ações hediondas como crimes de ódio.

ICSB: Beatriz Nascimento e Marielle Franco, ambas assassinadas, em que lugar essas histórias estão relacionadas?

Mel Nascimento: Apesar de suas trajetórias serem distintas, por vezes é possível notar aproximações existentes nas jornadas de Marielle e Beatriz, mesmo porque o racismo presente na sociedade brasileira tende a enxergar pessoas pretas como “uma coisa só” e isso acaba por “unificar” experiências. Ambas conseguiram romper com algumas amarras de exclusão, visto que, mulheres negras estão na base da pirâmide social brasileira sustentando o país com sua força de trabalho, e romper com esses grilhões históricos fugindo à regra do que o “destino” lhes reserva é também um dos grandes trunfos do legado deixado por essas pesquisadoras. Para além dos crimes que ceifaram suas vidas, suas trajetórias se encontram na intelectualidade, pesquisar sobre Marielle e Beatriz é pesquisar sobre vida, sobre existências que permanecem sendo de extrema representatividade mesmo após suas partidas.

ICSB: No seu doutorado, você nos traz a trajetória dessas mulheres a partir da vida delas, das suas produções enquanto mulheres negras e intelectuais. Você acredita que ainda temos a dificuldade de pensar nessas mulheres enquanto seres carregados de intelectualidade, o que reforça o epistemicídio?

Mel Nascimento: Essa dificuldade existe, mas esse não é um problema da comunidade negra, o Estado racista que segue querendo anular presenças pretas em espaços de poder, a exemplo do incômodo que afrodescendentes causam em muitos membros da academia.

ICSB: Trago a questão anterior, pois as universidades ainda colocam essas produções apenas como subsídio intelectual apenas para as referências relacionadas a alguns segmentos. Dentro dos seus estudos (ainda em curso) podemos considerar que isso tem mudado?

Mel Nascimento: A mudança está em curso, em alguns casos existe legitimidade para o povo preto falar somente de questões raciais, lembrando que até pouco tempo nem isso era possível. Mas ainda resistem à ideia de que podemos falar de economia, política, saúde etc. Acredito na mudança, mas ainda vai levar muito tempo.

ICSB: Você comentou que falar de Beatriz e Marielle é bastante complexo. Por quê?

Mel Nascimento: Porque falar dessas mulheres é lembrar de tantas outras mulheres pretas apagadas da sociedade, mas é também falar sobre identificação. Quando Beatriz Nascimento fala de sua experiência difícil na escola devido ao racismo, eu me lembro das inúmeras dores que a escola me trouxe, quando Marielle reivindica seu direito de fala e afirma na plenária da Câmara dos Vereadores “Não serei interrompida”, é possível compreender sua indignação diante o comum silenciamento de pessoas pretas. Olhar a história de Marielle e Beatriz é também olhar para história do povo negro do Brasil, consequentemente é olhar para minha própria história.

ICSB: O que você espera que aconteça com esses dois trabalhos que, na nossa opinião, são importantes para a comunidade em geral e, sobretudo, para a população negra brasileira?

Mel Nascimento: Eu espero que possa alcançar o maior número de pessoas possíveis, sobretudo os jovens, acredito que a educação é uma das maiores conquistas de uma pessoa. Falar de Marielle e Beatriz é falar da história de mulheres negras vitoriosas, precisamos publicizar o brilhantismo negro no mundo, como educadora trabalharei para isso todos os dias da minha vida.

ICSB: Como você classifica o seu lugar na sociedade antes e depois do Instituto Cultural Steve Biko?

Mel Nascimento: O Instituto Cultural Steve Biko é um dos mais importantes espaços que passei na minha trajetória, além de ter sido um dos grandes responsáveis pela minha entrada na universidade, através da Biko, me tornei uma mulher mais consciente dos meus direitos. No ano de 2022, junto ao Grupo de Pesquisa Onda Digital, núcleo Negros e Negras na Computação (UFBA), lançamos o documentário “Eu não Sou De Computação”, nesse trabalho além de ter feito o roteiro e narração contei um pouco da minha trajetória de vida e com muito orgulho citei a importância do Steve Biko no meu processo de crescimento. Antes da Biko eu era uma mulher em desenvolvimento com consciência, mas sem muitas referências que se parecessem comigo, depois da Biko eu passo a compreender a força da coletividade na luta preta, se hoje eu sou uma educadora, doutoranda e militante do  movimento negro devo isso também ao Instituto Steve Biko.

ICSB: Tem alguma mensagem para deixar para os/as jovens negros/as?

Mel Nascimento: Tenho sim! O processo de desenvolvimento para uma pessoa preta no Brasil é difícil e complexo, vivemos em uma nação repleta de preconceitos, mas ainda assim vale a pena seguir em luta. É necessário planejamento, uma pessoa organizada é uma pessoa mais preparada, nada está pronto, é preciso muita disposição para ocupar espaços, mas digo que é possível chegar mais longe. Entre em contato com o que existe de mais poderoso em vocês e construam seus caminhos! Por fim, sempre que possível usem a alegria como ferramenta de resistência, essa é uma das táticas mais poderosas de sobrevivência

+ De acordo com o Mapa da Violência 2015: Homicídio de Mulheres no Brasil (Flacso/OPAS-OMS/ONU Mulheres/SPM, 2015), em 2013 foram registrados em 4.762 assassinatos de mulheres.

++ Criada há oito anos, a Ronda Maria da Penha é uma política pública que nasceu de um termo de cooperação assinado entre a Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM), a Secretaria da Segurança Pública (SSP), o Ministério Público (MP), o Tribunal de Justiça (TJ) e a Defensoria Pública (DP). A unidade integra a rede de enfrentamento à violência contra a mulher no acompanhamento das mulheres com medida protetiva instaurada pela Justiça.


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