GILDECI DE OLIVEIRA LEITE

 GILDECI DE OLIVEIRA LEITE

22/02/2024

GILDECI DE OLIVEIRA LEITE

O desrespeito às religiões de matrizes africanas tem sido um fato rotineiro nos dias atuais do Brasil e da Bahia. Uma situação que evidência o racismo no Brasil e nas instituições que, de acordo com a Legislação brasileira, é laico. O Instituto Cultural Steve Biko conversou com o professor e escritor Gildeci de Oliveira Leite sobre está temática que tem lugar central em suas obras literárias.

Gildeci Leite é professor de Literatura na Universidade do Estado da Bahia (UNEB), Doutor em Difusão do Conhecimento (UFBA), Mestre em Literatura (UFBA), Especialista em Educação (ABEC - UNIBA) e Licenciado em Letras Vernáculas (UFBA). É Sócio do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia (IGHB) e editor das Coleções: Vertentes Culturais da Literatura na Bahia e Leituras de Letras e Cultura. Em sua vida acadêmica, suas pesquisas são voltadas para a crítica da literatura e da cultura, em especial, sobre baianidades, afro-baianidades, literatura de axé e Jorge Amado. Muito jovem participou de festivais literários, inicialmente priorizando a poesia, hoje no campo literário investe seu tempo na prosa.

Já publicou as obras: 02 de julho: a força da jurema, A saideira e feliz 2015, Espírito de Natal e Felizes, reagiremos. Atualmente, ele lançou os livros A casa do mistério ou a casa do renascimento, pela Editora Mayamba, e Babá alapalá: caminhos e encantos, pela editora Segundo Selo. 

Os livros estão disponíveis para a venda nos links abaixo.

A casa do mistério ou a casa do renascimento

Babá alapalá: caminhos e encantos

 

Confira abaixo nossa conversa na íntegra.

ICSB: O que podemos caracterizar como Intolerância Religiosa?

Gildeci Leite: Sempre que houver uma ação, seja ela pautada em violência simbólica, física ou psicológica, para impedir que crenças, rituais, práticas de religiões não hegemônicas possam exercer seus modos de ser e de estar no mundo teremos algum exercício de intolerância religiosa. Imaginemos como deve ficar a cabeça de uma criança — cujos pais são de religiões afro-brasileiras — ao ouvir que orixás, inquices, voduns e caboclos seriam demônios? Esse tipo de violência é praticado todos os dias em nosso país. Isso sem esquecer o quanto ocorre de violência física. Em contrapartida, eu que sou candomblecista, respeito todas as práticas e exercícios religiosos, indo além da tolerância até o acolhimento, sem abaixar a cabeça.

ICSB: Podemos apontar um momento histórico para o surgimento dessa ação/temática? 

Gildeci Leite: Não posso precisar o momento exato do surgimento, mas podemos considerar que desde que existe o desejo colonial, a vontade, o intuito de colonizar e dominar o outro, procurou-se depreciar os modos de ser e estar no mundo do outro e principalmente suas crenças religiosas.

ICSB: Alguns líderes religiosos ligados às religiões de matrizes africanas contestam a denominação da palavra: Intolerância, pois acreditam que é preciso respeitar e não tolerar. Como o senhor vê este jogo de palavras?

Gildeci Leite: Concordo! Vejamos, se questionamos apenas a partir do conteúdo semântico da palavra intolerância, podemos fazer o outro entender que seria o suficiente que nos tolerassem. Etimologicamente, quem tolera suporta, consente e nós não estamos buscando o consentimento do racista para sermos nós mesmos, para pedir bênçãos a orixás, inquices, voduns, caboclos, ancestrais. Já quem suporta, sofre para sustentar algo sobre si. Imaginemos o suportar de um peso sobre a cabeça, um dia, o tal peso tornar-se insuportável e sob o pretexto de não mais aguentar haveria a justificativa para eliminar o peso, pois é isso que tem acontecido. Tratam-nos como pesos!  Fingem nos suportar e quando bem entendem tentam nos eliminar, não raro com sucesso. Sim, é preciso haver respeito!

ICSB: Como podemos associar a Intolerância Religiosa ao Racismo?

Gildeci Leite: Vou mencionar alguns exemplos. Em meu romance “A Casa do Mistério ou a Casa do Renascimento”, uma beata condena um pequeno cortejo de pessoas de axé, ao tempo em que enaltece a procissão católica. O padre repreende a voz racista. Trazendo a cena para a vida real, seria como enaltecer, afirmar o belo da marcha para Jesus ou uma procissão católica, por exemplo, e ao mesmo tempo não entender ou não querer entender o belo do presente de Oxum no Dique do Tororó. Nos exemplos, tanto ficcional, quanto da vida real o que determinaria a repulsa e a desvalorização do sagrado seria o racismo, afinal axé é energia negra e há axé no cortejo do romance e no presente de Oxum. Por falar em presente, não tenho dúvida que a comparação de Iemanjá ao arquétipo da mulher branca e/ou da sereia contribui para aproximação de muita gente preconceituosa, assim aceitam Iemanjá também por equivocadamente acreditarem que ela é branca.

ICSB: Não é possível consideramos no mínimo esdrúxula, intolerância contra religiões de matrizes africanas em salvador, a cidade mais negra fora da África?

Gildeci Leite: Combatemos violências praticadas contra nossas negras existências todos os dias e uma dessas violências consiste em construir em nossas mentes o pensamento de que não seriamos belos. O belo seria, a partir da voz racista e colonizadora, sempre o outro, não negro. Assim, se a pessoa é convencida de que ela não é bela por ser negra, certamente irá buscar referências que lhe aproxime daquilo que seria desejável, aceitável, respeitável, incluindo referências religiosas e culturais não negras. Compreendo que há belos de todas as naturezas e acredito que todos os seres humanos são belos.

Parece simplório associar o racismo à manipulação do conceito de belo, mas não é. Já que estamos jogando com as palavras, o belo é o bonito, encantador, sublime, elevado, bom e generoso e o contrário disso tudo já sabemos. Assim, seria digno de aceitação pública portar uma bíblia por debaixo do braço, um crucifixo no pescoço, mas uma sacola ou balaio com ebó, uma conta de orixá precisaria ser disfarçada? Entendo que há rituais que devem ser mais discretos e não é disso que falo. Afirmo que parte significativa do exercício do racismo religioso é praticado por pessoas negras, que são vítimas do racismo e tornam-se algozes de seu próprio povo. Contudo, se os verdadeiros racistas não tivessem sucesso na construção de exclusividade do belo ao não negro, mais pessoas perceberiam o belo em religiões negras, por exemplo. Beleza é uma construção! Desta forma, temos um pouco do entendimento de como na cidade mais negra do mundo fora do continente africano é tão presente a intolerância religiosa

ICSB: Como essa Intolerância configura-se?

Gildeci Leite: Configura-se na apropriação e diabolização de tudo que é negro e indígena. Afirmam que as danças dos orixás, inquices, voduns, caboclos são diabólicas, mas dançam freneticamente em templos cristãos, dizendo que estão queimando o diabo. A receita é simples e eficiente, na base do “tudo nosso e nada deles”! Apropria-se de elementos como banhos de folhas, atividades espirituais relacionadas a determinados dias da semana, típicas de religiões afro-brasileiras e fazem rituais parecidos em templos evangélicos, com a ressalva que nossas atividades, das quais retiram suas inspirações, seriam diabólicas.

Vou exemplificar, para nós a segunda-feira é dia Exu, Omolu, dos ancestrais, em algumas casas também dia de Ogum e, portanto, de entidades mais propícias a curas, enfrentamentos e como dizem os mais velhos, habilitadas a realizar descarregos. Há algum tempo, anunciam descarregos, ditos cristãos, na segunda-feira e em concomitância, diabolizam Exu, Ogum, Omolu, os ancestrais e nossa segunda-feira. Por isso, entendo que praticam o tal do “tudo nosso e nada deles”, atribuindo tudo o que é de ruim para nós. Só não podemos cair nas armadilhas do estereótipo e acreditar que todo cristão é racista e perseguidor, generalizações desse tipo são armas de racistas e não nossas.

ICSB: A Intolerância Religiosa é um tema antigo, mas pouco discutido na esfera pública, mas, atualmente, tem se falado muito. Existe algum fenômeno que possa explicar?

Gildeci Leite: Entendo que os movimentos negros organizados têm contribuído para o encorajamento de denúncias, da luta pela igualdade, da afirmação negra. Também o nosso belo tem encantado cada vez mais pessoas, resultado de várias ações de arte e educação antirracistas em todos os níveis de ensino. Gosto de lembrar de uma fala de Elisa Lucinda, ela diz “Eu não quero um mundo dominado por negros, eu quero um mundo compartilhado”. Em uma leitura apressada pode ficar parecendo que Elisa Lucinda teria abandonado a luta, mas muito pelo contrário, ela diz que quer uma luta por igualdade e não por busca de supremacias. Acredito, que quando sabem que nossa proposta de luta é por igualdade, conseguimos mais aliados e tornamos mais perene o sonho de paz. Supremacias deste ou daquele grupo étnico, só alimentam guerras e nossos sonhos, nossas guerras devem ser pela paz. 

ICSB: O senhor é autor de dois livros que falam sobre Intolerância Religiosa. Podemos falar que a ausência de uma literatura mais expressiva, que fale a respeito, contribui para o desconhecimento sobre a Intolerância?  

Gildeci Leite: Há muitas obras literárias e de outras linguagens artísticas importantes e significativas, que denunciam a intolerância religiosa e/ou enaltecem aspectos da mitologia afro-brasileira, sem se tornarem panfletos ou proselitistas. Tive a oportunidade de assistir bem de perto José Carlos Limeira recitar poemas que eu gosto de classificar como literatura de axé. Também tem as produções de Mãe Stella de Oxóssi, Mestre Didi, Carlos Vasconcelos Maia, Lande Onawale, Wesley Correia, Zora Seljan, Lívia Natália, Anajara Tavares, Cyro de Matos, Rita Santana só para citar alguns.

Agora, precisamos deixar registrado que nossas literaturas e demais artes de axé são obras de arte, não obstante pautadas na mitologia afro-brasileira. Elas não são tentativas de conversões religiosas, afinal nas artes de axé o segredo ritual é preservado, além do mais, proselitismo não é característica de religiões afro-brasileiras.

Daí, é preciso compreender o mito como narrativa primordial e não como mentira. Não existe a intenção de captar novas almas como em literaturas religiosas, pois são ficções que incluem representações mitológicas afro-brasileiras, isso ajuda a quebrar preconceitos. Então ao invés de recontar feitos de Thor — os quais também podem ser belíssimos — recontaríamos feitos de Xangô, ainda feitos inspirados em narrativas a respeito de Xangô, por exemplo. Em "A Casa do Mistério ou a Casa do Renascimento" e "BABÁ ALAPALÁ: Caminhos e Encantos" há escritas inspiradas na mitologia afro-brasileira. A arte tem se inspirado em narrativas e feitos mitológicos desde sempre. A diferença é que a literatura, as artes de axé inspiram-se no axé. Só precisamos de mais espaço.

ICSB: Os números de violência contra praticantes das religiões de matrizes africanas vêm sendo crescente. O senhor acredita que é uma questão apenas de preconceito ou tem algo mais nessa relação?

Gildeci Leite: Há também uma nítida disputa pelo monopólio do mercado da fé. Ao que parece há entre as metas, o desejo de eliminação da concorrência. Entendamos como concorrente, todo aquele que de alguma maneira pode retirar um fiel contribuinte do controle do sacerdote racista. Assim, falas tais como “pisar na cabeça da serpente” são materializadas através de diversas formas de agressividades a membros de religiões negras. Então voltamos à questão do belo, pois se seria perigoso ser de uma religião afro-brasileira, consequentemente não seria belo, afinal ser permanente alvo de agressões não é algo bom. Portanto, incentivar a violência em suas diversas modalidades contra pessoas de religiões como o candomblé parece-me também um apelo mercadológico, algo frequente em práticas intolerantes e com êxito.

Aliás, é bom lembrar que outros mercados também são disputados. Não esqueçamos de inúmeras narrativas de depreciação às baianas do acarajé com intuito de promover o acarajé de cristo, feito por baianas evangélicas em total detrimento das baianas que são de axé. Assim, a baiana de axé ou até sem vínculo com uma religião de axé, teria a alternativa da luta ou da adesão à igreja algoz.

Lembro de cenas dos anos 1990 em Pirajá, bairro soteropolitano no qual me criei e vivi décadas. Algumas igrejas faziam campanhas abertas contra as baianas de religiões de axé.

ICSB: Uma legislação mais firme pode mudar esta realidade?

Gildeci Leite: A legislação ajuda, mas somente ela não resolve. Outro aspecto importante é que obviamente para uma legislação mais firme teríamos que contar com maioria no parlamento, comprometimento com a diversidade e isso não tem sido nossa realidade. Acredito no axé da arte e da educação de forma inclusiva termos o direito de usar nossos torços e nossos filás.

ICSB: Como o senhor entende a intolerância religiosa no cotidiano brasileiro desde a promulgação da lei 10.639, já é possível fazer esse balanço?

Gildeci Leite: Aos poucos tivemos conquistas de aliados e de autorreconhecimentos negros. Havia muita gente que fingia não se saber negro, negra e temos mudado isso através da educação e da arte. Com nossas narrativas, pudemos encantar mais pessoas e outras, infelizmente, aprenderam a disfarçar melhor seus racismos. Como já dissemos aqui, houve também reações conflituosas e a intensificação dos discursos e práticas de diabolização, mesmo assim o saldo é positivo para nós.

ICSB: Para além dessa Lei 10.639, como podemos construir uma sociedade com respeito à liberdade religiosa?

Gildeci Leite: Com arte e educação inclusivas, como já dissemos aqui, e sem nos deixar levar pelo discurso “tudo nosso e nada deles”. Sempre optei por uma luta por um mundo compartilhado, quando vi o comentário vindo de Elisa Lucinda, senti-me representado.

ICSB: Qual a principal mensagem o senhor pretende passar com seus dois últimos livros: "A Casa do Mistério ou a Casa do Renascimento" e "BABÁ ALAPALÁ: Caminhos e Encantos"?

Gildeci Leite: Em ambas as obras a mensagem principal é de fé na diversidade!

 

   

 

Como romance "A Casa do Mistério ou a Casa do Renascimento", através de seu narrador-personagem Exu, discutimos aspectos da indústria da fé, das perseguições às religiões afro-brasileiras e do sucesso de nossas resistências. Acredito que conseguimos mostrar a mitologia afro-baiana com naturalidade, conforme compreendeu Muniz Sodré no prefácio da edição brasileira publicada pela Segundo Selo. O que Sodré chama de naturalidade permite, por exemplo, ao leitor outra concepção a respeito das cobras, diferente daquela preconizada pelo cristianismo ou até outro entendimento da sexualidade a partir de Exu, seu patrono. Assim, acredito que em "A Casa do Mistério ou a Casa do Renascimento" existe a mensagem da existência de uma forma afro-baiana de compreender e de viver o mundo na resistência contra a intolerância religiosa rumo a um mundo verdadeiramente plural e de diversidade. Mais ainda, há um certo apelo para entendermos que há gente boa e gente não tão boa em todos os pertencimentos éticos e religiosos. Sem esse tipo de entendimento, sem os olhos bem abertos para as armadilhas, nos tronaríamos ingênuos, presas fáceis.

A questão principal seria saber como agir diante de cada situação, diante de cada algoz em seus variados pertencimentos étnicos culturais, religiosos. Não há uma receita pronta para esse bolo!

 

  

 

"BABÁ ALAPALÁ: Caminhos e Encantos" é um livro de contos, crônicas e artigos de opinião publicados em blogues, jornais de grande circulação do Brasil e de Angola. Reunimos 88 textos, selecionados dentre mais de 200 para formar o livro publicado também pela Segundo Selo. As muitas vozes, que ecoam da publicação podem ser resumidas no próprio título da obra. Babá Alapalá é um ancestral de Xangô cultuado na Ilha de Itaparica e no Ilê Asipá em Salvador — terreiro de culto aos ancestrais onde sou Aiyò Inà (Alegria do Fogo). Assim, para nós Babá Alapalá nos dá caminhos e encantos, ele é próprio caminho e o encanto. Desta forma, a proposta do livro é contribuir com caminhos para entender a afro-baianidade, afro-brasilidade, possibilidades de luta antirracista, ludicidade e diversos aspectos da pluralidade cultural. Esse livro conta com um caderno de exercícios, disponibilizado gratuitamente pela Segundo Selo com 40 questões para o ensino básico. Há arte e didatismo na obra, em seus conjuntos de mensagens.


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